quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Retirados na Madrugada: a crônica dos homens (in)visíveis


Retirados na Madrugada: a crônica dos homens (in)visíveis1

Profº. Agnaldo Rabelo2

A Região Metropolitana de Belém (RMB), concentra quase um terço da população do Estado do Pará e além da capital, compreende os municípios de Ananindeua, Marituba, Santa Bárbara e Benevides, em uma área somada de 1.820 Km2. Embora, nem todos os integrantes deste emaranhado populacional, de certa forma, sejam visíveis a olho nu.
Fundada em 1616, Belém experimentou o apogeu de sua urbanização durante a fase áurea da borracha na região, na administração do Intendente Antônio Lemos (1897 – 1910), que intensificou a renovação estética da área central da cidade, com a “limpeza” urbana, pavimentação de ruas, construção de praças e outros espaços públicos (entendo que os mesmos não são necessariamente públicos), como o Mercado de São Brás e o Teatro da Paz, símbolos deste período em que se vislumbrava uma Paris N'América, pelo menos para alguns privilegiados. Desde então, do momento que ficou conhecido como a Belle-Époque, o poder público vem buscando reordenar o espaço urbano da “bela morena”, segregando parte de seus moradores, definindo que áreas devem ser ocupadas por classes sociais distintas, tanto que, paralelamente, a padronização do centro, esteticamente europeizado, surgiram bairros destinados à moradia da população menos favorecida da “Paris dos Trópicos”.
É neste contexto, de vinhos novos em velhas garrafas ou vice-versa, como diria o velho Geertz, que ouvimos falar da bem sucedida retirada (na madrugada) de trabalhadores ambulantes, que lutam para permanecer no eixo central da metrópole regional, núcleo vocacionado à moradia de uma burguesia social, que se vê ameaçada pela lógica desordenada, nas calçadas das principais avenidas da área comercial.
Não quero negar, enquanto geógrafo de formação, a marcante inquietação paisagística, da aparente desordem que permeia estes logradouros, que historicamente mantiveram-se ocupados graças a um delineamento de negociações não muito claras entre ambulantes e a Secretaria Municipal de Economia, órgão responsável pela fiscalização e aplicabilidade do Código de Posturas do Município. Nem mesmo pretendo desconsiderar o constrangimento, não-cidadão, em transitar por calçadas intrafegáveis.
Entendo, porém, que é necessário e urgente que se pense nesta quase unanimidade, nos moldes de Nélson Rodrigues, em alguns pontos, que considero fundamentais sobre mais esta batalha travada diante de nossos olhos indiferentes. Se houve, de fato, alguma negociação entre as partes interessadas, qual a razão para a retirada das barracas durante a brisa da noite? (não se pode falar em retirada de ambulantes, pois poucos se encontravam no local durante a operação). A reposta seria a garantia da fluidez do transito nas vias do entorno? Ou o temor a resistência dos remanejados, como já ocorrera em momentos similares? Fato que, se concretizou de maneira inusitada, conforme noticiaram os veículos de comunicação pouco tempo depois.
Neste entrevero, há que se considerar a indubitável incapacidade do poder público em resolver a problemática do desemprego em Belém, seja em razão de uma veia migratória, que pulsa continuamente em direção à RMB, especialmente, no pós 1960, quando, em relação à Amazônia, intensifica-se a noção de fronteira do capital, por conta de uma matriz econômica, em que o exército de reserva criado, conforme o quase profeta Marx, ajuda a manter a mais-valia da mão de obra subjugada.
Outro quesito importante, é que nas entrelinhas desta reordenação, está a pretensa acessibilidade dos consumidores, ávidos por adentrar o templo do consumo, condição constitucionalmente garantida pelo direito de ir e vir, que ou trabalhadores da informalidade, “desordeiros”, poderiam inviabilizar.
Contudo, se a questão é permitir à accessibilidade, o que fazer com os remanejados? Garanti-los um “buraco” no centro da cidade3, sem que haja qualquer perspectiva de manutenção dos padrões de remuneração. Percebo que nesta defesa da “acessibilidade”, esqueceram propositalmente, de fazer menção a outros locais de Belém, que vivenciam esta situação, como as tão esperadas e nunca concluídas, ciclovias da Rodovia Augusto Montenegro, bem como, as calçadas padronizadas na mesma via, abandonadas a mesma sorte e que tem em suas finalizações: uma boca-de-lobo. Percebo agora o recado: aos (in)visíveis urbanos: o direito ao “buraco”. [...] Pense nisso...
1 Texto produzido em novembro de 2010, tendo por referência alguns artigos de jornais, que circulam na capital paraense e que enfatizavam naquele momento, a retirada de trabalhadores ambulantes a fim de “organizar” o centro comercial de Belém.
2 Mestre em Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia através do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – PPGCS, da Universidade Federal do Pará. Especialista em Estudos de Cultura Amazônia pelo Laboratório de Apoio Pedagógico em Letras – LAPEL/UFPA, bem como, possui graduação de licenciatura e bacharelado em Geografia/UFPA. Professor da Rede Pública Estadual e do Centro de Referência em Educação Ambiental Fundação “Escola Bosque”.
3O espaço na comercial de Belém, reservado para a realocação dos trabalhadores informais, proposta pela Prefeitura Municipal de Belém, é tradicionalmente conhecido o “buraco da palmeira”, por fazer referência a uma antiga fábrica de biscoitos que existiu no lugar.